30.9.12

Reviver o período da II Guerra Mundial no Tamariz


Em Setembro de 2011, passei alguns dias no Estoril, aproveitando o sol e a praia, ao mesmo tempo que preparava um futuro livro sobre a espionagem em Portugal durante a II Guerra Mundial. De Lisboa, deslocava--me quase diariamente à piscina do Tamariz, com uma pasta cheia de livros sobre esse tema. A caminho da praia, eu passava ao largo do Casino – cujo edifício já não é o mesmo de há 60 anos - e pelos hotéis que já existiam durante a II Guerra Mundial, albergando refugiados ricos, ex-chefes de governo e ex-monarcas de países ocupados pelas tropas alemãs, bem como espiões dos dois campos beligerantes. Pude assim ler relatos sobre a actividade de agentes secretos ao serviço da Grã-Bretanha ou da Alemanha, que estiveram muitos deles alojados no Hotel Palácio, imersa num ambiente que remetia para a época dos anos quarenta do século XX.

Efectivamente, durante a II Guerra Mundial, a Costa do Sol, e em particular o Estoril, viveu um período de pujança, devido ao «turismo forçado» de muitos dos perseguidos e fugidos à guerra e às perseguições racistas e políticas do nacional-socialismo alemão e de outras ditaduras europeias anti-semitas. Ironicamente, foi num país onde vigorava uma ditadura nacionalista com simpatias pelo anti-demo/liberalismo e anti-comunismo do nacional-socialismo alemão que alguns perseguidos por Hitler e pelo seu regime encontraram um porto de abrigo transitório, que nunca foi de exílio definitivo.
Devido à censura, os jornais portugueses quase silenciaram por completo a presença dos anónimos «refugiados de guerra», como lhes chamaram, e preferiram evidentemente realçar os «visitantes ilustres» que chegavam a Portugal, «ponto terminal da Europa para as carreiras aéreas da América», como se lia, num entusiasmado artigo do Diário Notícias (DN), de Novembro de 1939. A partir do final desse ano, chegaram perante o deslumbramento dos portugueses e dos repórteres, muitos ex-governantes europeus, aristocratas, ex-monarcas, escritores e actores, expulsos pela ocupação alemã dos seus países ou voluntariamente, que passaram pelos hotéis do Estoril, a caminho de exílios dourados.
No final de 1940, um editorial do mesmo DN dava conta que a «guerra e o Clipper tornaram Lisboa escala obrigatória de vedetas» e que a capital portuguesa era então «a sede cinematográfica da Europa». Por Portugal, porto neutro europeu, passaram também, entre Janeiro e Outubro de 1940, a caminho do exílio, os ex-presidentes lituano e russo, respectivamente, Autonas Smetona e Kerenski, bem como os ex-governantes da Grécia, Jugoslávia, Bélgica e França. Muitos aristocratas e ex-monarcas também se instalaram nos hotéis luxuosos de Lisboa e do Estoril. Foram os casos, entre outros, da princesa Margarida da Dinamarca, dos príncipes regentes da Jugoslávia, Alexandra e Nicolau, dos condes de Paris, do Arquiduque Otto de Habsburgo e da Grã-Duqueza Carlota do Luxemburgo.
Músicos e compositores também se exilaram no «Novo Mundo», através de Portugal. Entre eles, contaram-se os compositores Bela Bartok e Darius Milhaud, bem como o antigo presidente da República da Polónia e pianista, Ignacy Jan Paderewski (1860-1941), que aguardou no Estoril a ida para os EUA. Pelo Estoril, passou logo no início de 1938, ainda antes de a guerra começar, o escritor e intelectual alemão, Stefan Zweig, exilado em Londres, para onde tinha fugido da perseguição nazi. Da estância estância balnear do Estoril, Zweig escreveu duas cartas aos seus amigos Joseph Roth e a Siegmund Freud, convidando-os para passarem um «intermezzo meridional» nesse «local tranquilo da Riviera» portuguesa. Já depois o começo da guerra, estiveram de passagem no Estoril diversos governantes, personalidades e cabeças coroadas da Europa, ocupada pela Alemanha.
Em Novembro de 1940, hospedaram-se no Hotel Palácio do Estoril o milionário Charles Guggenheim, a futura primeira-ministra da Índia, Indira Nehru, e o economista John Maynard Keynes. Outros passaram pelo Estoril com passaportes falsos, clandestina e brevemente. Foram os casos de diversos escritores e intelectuais alemães e austríacos fugidos ao nacional-socialismo, munidos de passaportes checos emitidos em Marselha, que ficaram alojados no Grande Hotel da Itália do Estoril, entre Julho e Outubro de 1940, enquanto aguardaram o navio para os Estados Unidos da América. Entre estes, contaram-se o escritor Franz Werfel e a esposa, Alma Mahler-Werfel, que sentiu, em Portugal, uma «tranquilidade paradisíaca», bem como o historiador Golo Mann, filho de Thomas Mann e sobrinho de Heinrich Mann. Este último e a sua mulher, Nelly, vinham munidos com passaportes checos em nome de Ludwig, para escapar à perseguição nazi.
Antes de partir para Nova Iorque, juntamente com o cineasta Jean Renoir, o aviador e autor do Príncipezinho esteve alojado, entre 28 de Novembro e 20 de Dezembro de 1940, no Hotel Palácio do Estoril. Face à sofreguidão com que os refugiados mais ricos gastavam, na roleta, fortunas «esvaziadas de significado» e «moeda talvez caducada», Saint-Exupéry sentiu uma tristeza e uma angústia iguais à «que nos invade no jardim zoológico diante dos sobreviventes de uma espécie em (vias de) extinção».
A maioria dos refugiados e estrangeiros que se alojaram no Estoril e na «Costa do Sol» permaneceram pouco tempo nesse local de «turismo forçado». As praias da costa do Sol, em particular a do Tamariz no Estoril, aliás como as da Foz do Arelho e da Figueira da Foz começaram a encher-se de refugiados, a partir do verão de 1940. A presença dos refugiados em Portugal nessa época foi aliás a causa da introdução de novas leis de policiamento de costumes e, nomeadamente, da adopção de normas sobre o uso dos fatos de banho, que deviam obrigatoriamente incluir o saiote, para as mulheres, e uma camisa que cobria o tronco, para os homens.
Na Costa do Sol, além dos refugiados ricos, diplomatas e estrangeiros de passagem, também permaneceram, no período da II Guerra Mundial, muitos agentes secretos dos dois campos beligerantes, que se escondiam sob a capa de adidos diplomáticos. Os agentes secretos da Alemanha terão escolhido o Hotel Atlântico, o Grande Hotel do Monte Estoril e o Hotel do Parque, enquanto o Grande Hotel da Itália e o Hotel Palácio eram os preferidos dos agentes secretos dos aliados. Aliadófilos e germanófilos também se cruzavam nos lobbies dos hotéis da Inglaterra, Paris e Miramar.
Em Outubro de 1940, alojou-se no Hotel Palácio do Estoril, o arménio Nubar Gulbenkian, que colaborou com a agência secreta britânica, MI 6 e, entre 19 e 24 desse mês, aí se instalou também o futuro ensaísta Isaiah Berlin, que então trabalhava na Embaixada britânica em Washington. Embora com um peso diferenciado consoante as fases da guerra, a actuação dos serviços secretos ingleses predominou sobre os outros. «Kim» Philby, que, mais tarde, se soube ser um espião britânico ao serviço da URSS, alojou-se no Estoril, da mesma forma que o escritor e agente secreto Graham Greene, e autor de inúmeros livros de espionagem. Outro escritor e agente secreto do Almirantado britânico que se alojou no Estoril, em Maio de 1941, foi Ian Lancaster Fleming, o criador da figura de James Bond.
Thomas Malcolm Muggeridge, outro elemento da Intelligence inglesa, alojou-se na Pensão Royal do Estoril, em Maio de 1942. Enquanto o espião jugoslavo Bocko Christitch se hospedou no Grande Hotel do Monte Estoril, em Agosto de 1941, o conde Iwan Schouwaloff, um russo branco naturalizado holandês que espiou por conta dos alemães viveu em Cascais. Este último viria a ser denunciado como espião nazi, pelo jugoslavo Dusko Popov («Triciclo»), um espião duplo que estava na realidade ao serviço dos britânicos. Entre 1940 e 1944, várias vezes em Portugal, o operacional do XX Commitee, «Triciclo» transmitiu aos ingleses e norte-americanos diversas informações, nomeadamente sobre o ataque japonês a Pearl Harbour.
Popov tinha um quarto no Hotel Palácio do Estoril, onde também permaneceu o célebre espião duplo «Garbo», para os ingleses, «Arabel», para os alemães. Tratou-se do catalão Juan Pujol, que na realidade esteve ao serviço dos britânicos e, em 1944,transmitiu aos alemães informações erradas sobre a localização do desembarque aliado, no continente europeu, dando a entender que o «Dia D», de 6 de Junho ocorreria na zona do Pas-de-Calais e não, como aconteceu, nas praias da Normandia. No Hotel Palácio do Estoril, também estiveram hospedados os actores Zsa Zsa Gabor, fugida da Hungria, em 1944, e Leslie Howard, que colaborou no esforço de guerra dos aliados. Este último partiu de Portugal, onde tinha vindo assistir à exibição do seu penúltimo filme, «Spitfire, the first of the few», em Junho de 1943, para a sua derradeira viagem num avião da BOAC, abatido por caças alemães no golfo da Biscaia.
No Estoril, também viviam espiões ao serviço da Alemanha, pertencentes quer a redes de espionagem da Abwehr – do Alto Comando da Wehrmacht - ou da Gestapo-SD. Em 8 de Outubro de 1943, por denúncia dos ingleses à PVDE, uma brigada desta polícia política portuguesa participou numa rusga, às moradias «Bel Ver», «Gira-Sol» e «Bem-me-Quer», no Estoril, as últimas das quais pertenciam respectivamente a Wilhelm Lorenz e a Hans Bendixen. Outro elemento da Abwehr alemã era o capitão Fritz Kramer, que esteve alojado no Hotel Atlântico, do Estoril, até se instalar na «Casa Atlanta».
Além de Bendixen e de Fritz Kramer, muitos outros agentes secretos alemães viviam aliás no Estoril: foram os casos, por exemplo, de Johan Georg von Wussow e de Rolf Friederici adjunto do adido comercial da Legação alemã, que reorganizou os serviços secretos da Alemanha em Portugal. Outro elemento importante da espionagem alemã em Portugal era Erich Emil Schroeder, «assistente científico e delegado da polícia» (Polizei Verbindungsführer), da Legação alemã em Lisboa, Schroeder era provavelmente o elemento da Gestapo-SD, sucedendo, em Março de 1941 e até ao final da guerra, a Walter Schellenberg.
Este último foi incumbido de raptar os duques de Windsor, que estiveram alojados na casa do banqueiro português Ricardo Espírito Santo, em Cascais, entre Junho e Outubro de 1940. O plano não foi porém levado adiante e, em 2 de Agosto de 1940, o duque de Windsor e Wallis Simpson partiram, de Lisboa, no navio «Excalibur», rumo às Bahamas, tal como pretendia Churchill. No mesmo ano, partia também do Estoril, para embarcar em Lisboa no navio que o levaria ao exílio nos EUA, o exilado alemão Heinrich Mann, deixando escrito nas suas memórias que o olhar sobre Lisboa era «o último, de uma Europa que fica».